O nascimento de um monstro sagrado!

A edição 103 da Volta a Itália está a ser histórica para o ciclismo português. Ruben, o Guerreiro de Gelo, já venceu uma etapa, tendo estado na liderança da classificação da montanha e podendo ainda disputar a mesma. Quanto ao Canibal das Caldas, na sua epopeia cor-de-rosa já bateu vários recordes, tanto a nível do ciclismo nacional como da própria história do Giro.

Refira-se que João Almeida já é o sub-23 com mais dias de camisola rosa na história do Giro, e está a um dia na liderança de igualar a marca do “Pirata” Marco Pantani, com 14 dias de rosa. Relativamente ao “nosso” ciclismo, são dois os recordes bem importantes batidos pelo ciclista das Caldas da Rainha e que tinham sido estabelecidos por dois monstros sagrados do pedal lusitano.

Por um lado, o ciclista de 22 anos tornou-se o português com mais dias na liderança em grandes voltas, sendo que amanhã, à partida para a 16ª etapa, irá envergar a camisola rosa pelo 13º dia consecutivo. O anterior recorde pertencia a Acácio da Silva, que conseguiu ser líder por 6 dias, 2 na Volta a Itália de 1989 e 4 na Volta a França do mesmo ano.

O outro recorde é o de mais dias consecutivos de um luso na liderança de uma grande volta. A anterior marca pertencia a Joaquim Agostinho, que conseguiu ser líder de uma grande volta por 5 dias, no seu caso na Volta a Espanha de 1976.

Atualmente, João Almeida é a grande esperança de Portugal para poder ver novamente um ciclista luso a lutar pela vitória numa volta de três semanas. A evolução do próprio ciclista assim o ditará, no entanto, neste momento parece claramente estar na linha dos grandes voltistas nacionais. Recorde-se que o mais perto que os lusitanos estiveram de triunfar numa grande volta foi através dos 3 pódios de Agostinho, 3º no Tour de 1978 e no de 1979 e 2º na Vuelta de 1974.

No início do Giro, sabia-se do valor de João Almeida como trepador e contrarrelogista e, consequentemente, como voltista. O potencial é inquestionável, mas neste Giro o objetivo passava por ganhar experiência, tal como outros jovens integrantes da equipa. No entanto, perante o desenrolar dos acontecimentos, as questões sobre a possibilidade de João Almeida poder lutar já por uma grande volta têm sido mais que muitas, sustentadas pelas mostras diárias de classe, talento, e forma física, assim como pelas próprias circunstâncias da corrida, nomeadamente em termos de abandonos, num ano tao atípico como este. Deixou de ser uma questão do “vamos preparar o futuro” para “porque não ganhar já”, até porque não se sabe o que o futuro reserva. Almeida pode acabar por nem evoluir para um ciclista de 3 semanas e mesmo que o faça, pode não voltar a ter uma oportunidade tão boa para lutar por uma grande volta. Para nós, adeptos velocipédicos, a única coisa a fazer é relaxar e apreciar o espetáculo que durante anos sonhámos ser possível!

O que podemos afirmar é que, com 15 etapas decorridas, Almeida já entrou em território desconhecido, tendo respondido com performances de nível mundial! As oportunidades para existir um dia mau do português começam a escassear, sendo o tempo perdido na última etapa em Piancavallo fruto de um trabalho extraordinário da Sunweb e também das próprias características de Almeida, mais do que um dia mau. No fundo foi um dia muito bom, se tivermos em conta a lista de grandes ciclistas que perderam tempo para Almeida: Nibali, Fuglsang, Pozzovivo, Majka. Se nos dissessem no início do Giro que isto viria a acontecer em contexto de luta pela geral, até o mais otimista dos adeptos ficaria desconfiado.

Faltam 6 etapas para terminar o Giro, sendo que uma é para sprinters, outra é de média montanha, há ainda um contrarrelógio, onde o português irá certamente ganhar tempo à maior parte da concorrência, o que significa que sobram 3 etapas de alta montanha. Analisando friamente a corrida, Kelderman é claramente o favorito. Está muito perto (15 segundos) na geral, foi o único dos favoritos a superiorizar-se a Almeida na montanha, e não está muito longe dele no contrarrelógio. Para a segunda posição é que parece não ser tão fácil de arranjar rivais que possam roubar ao português quase 3 minutos!

Como já foi referido diversas vezes, é ainda difícil de aferir a forma como João Almeida vai reagir ao tremendo esforço físico de uma grande volta, em especial nas subidas amais altas e longas da prova, mas de momento ele tem tudo para poder garantir o pódio, enquanto persegue também a classificação da juventude.

O ciclista da Deceuninck-Quick Step já fez história e pode fazer ainda mais. Em termos de classificação geral final, Almeida almeja superar todas as grandes exibições globais de portugueses na Volta a Itália. Refiram-se sucintamente as principais performances em termos de gerais individuais da prova transalpina:

José Azevedo (5º em 2001)

Acácio da Silva (7º em 1986)

Fernando Mendes (17º em 1976)

Tiago Machado (19º em 2011)

André Cardoso (14º em 2016 e 20º em 2014)

José Gonçalves (14º em 2018)

Se analisarmos as principais performances dos lusos nas outras duas grandes voltas, encontramos mais uma série de resultados excecionais. Na Volta França, os melhores registos de portugueses são:

Alves Barbosa (10º em 1956)

Joaquim Agostinho (8º em 1969, 14º em 1970, 5º em 1971, 8º em 1972, 8º em 1973, 6º em 1974, 15º em 1975, 13º em 1977, 3º em 1978, 3º em 1979, 5º em 1980, 11º em 1983)

Fernando Mendes (18º em 1973)

José Martins (12º em 1976 e 16º em 1977)

José Azevedo (6º em 2002, 5º em 2004, e 18º em 2006)

Rui Costa (18º em 2012)

Já na Volta a Espanha, a lista é ainda maior:

João Rebelo (6º em 1945 e 10 º em 1946)

Júlio Mourão (17º em 1945)

Ribeiro da Silva (4º em 1957)

Alves Barbosa (17º em 1957, 16º em 1958, e 18º em 1961)

Joaquim Agostinho (6º em 1973, 2º em 1974, 7º em 1976, e 15º em 1977)

Fernando Mendes (6º em 1975, 20º em 1976, e 13º em 1977)

José Martins (8º em 1975, 15º em 1976, e 20º em 1978)

José Madeira (12º em 1975)

António Martins (13º em 1975)

Manuel Rego (20º em 1975)

Joaquim Gomes (17º em 1994)

Orlando Rodrigues (14º em 1995)

Rui Sousa (16º em 2002)

Sérgio Paulinho (16º 2006)

André Cardoso (16º em 2013, e 18º em 2015)

Ruben Guerreiro (17º em 2019)

Resumindo, são 21 vezes em que os portugueses conseguiram fechar top 10 em grandes voltas, 11 delas através de Joaquim Agostinho.

No que toca a vitórias em etapas, refira-se que Ruben Guerreiro triunfou na 9ª etapa deste Giro, igualando mais um feito de Acácio da Silva, que era até então o único português a ter vencido uma etapa do Giro, ele que o fez por 5 ocasiões, nos anos de 1985, 1986, e 1989.

Relembre-se que na Volta a França, o pecúlio nacional é mais expressivo, com um total de 13 vitórias em etapas: cinco de Joaquim Agostinho, três de Acácio da Silva, três de Rui Costa, uma de Paulo Ferreira, e uma de Sérgio Paulinho.

Na Volta a Espanha, os portugueses conseguiram triunfar em 10 etapas, com três triunfos de Joaquim Agostinho, dois de João Rebelo, seguindo-se Nelson Oliveira, Sérgio Paulinho, Alves Barbosa, José Cardoso, e João Lourenço com 1 cada.

Assim, são um total de 29 triunfos em etapas de grandes voltas, um pecúlio que, quem sabe, não possa ainda ser aumentado durante esta edição do Giro. Ruben Guerreiro irá ao que tudo indica lutar pela classificação da montanha e pelo menos por mais uma vitória em etapa. Amanhã, com uma etapa de média montanha, será um bom dia para integrar a fuga que terá uma hipótese bem forte de chegar ao final.

A etapa de amanhã pode também ser chave para o próprio João Almeida. A Deceuninck-Quick Step pode tentar endurecer a corrida, com o objetivo de proporcionar um sprint de um grupo de favoritos onde Almeida será sempre um forte candidato à vitória mas também às bonificações. A etapa seguinte, na quarta-feira, será um duro dia de montanha, embora a subida final seja relativamente suave apesar de longa. Não será totalmente impossível de João Almeida sonhar com a manutenção da rosa até depois dessa etapa, no entanto, o português precisaria de obter mais alguns segundos de vantagem sobre Kelderman, pelo que a Deceuninck pode tentar armadilhar a etapa de amanhã.

A história do ciclismo português está a ser escrita perante os nossos olhos. Que feitos mais terão João Almeida e Ruben Guerreiro reservado para nos maravilhar? Será que estas performances vão ser contagiantes para o ciclismo nacional, na véspera do arranque de nova grande volta? Relembre-se que irão marcar presença na Vuelta a España: Rui Costa, Rui Oliveira, e Ivo Oliveira (UAE-Team Emirates), Nelson Oliveira (Movistar), e Ricardo Vilela (Burgos).

Perante o momento de enorme fulgor do ciclismo nacional e com o surgimento de um número cada vez maior de atletas de qualidade, fruto também da própria visibilidade que este Giro e outras provas têm tido, é possível acreditar que o futuro será risonho para as cores nacionais e que grandes vitórias estarão por vir muito em breve. Entretanto, aguardamos pela semana final da Volta a Itália, que tão histórica pode ainda ser para Portugal.

One thought on “O nascimento de um monstro sagrado!

  1. Muito bom bom artigo sobre os nossos principais ciclistas, todavia faltam duas referências omitidas que são de registar igualmente: a vitória de Ribeiro da Silva na mítica etapa do Tourmalet do Tour de France de 1957 e a classificação final da geral o 25º lugar. De notar que este grande corredor desapareceu precocemente aos 23 anos em 1958 quando muito havia a esperar dele pois também já tinha ganho duas Voltas a Portugal em 1955 e 1957.

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