A crucial importância do Tour de l’Avenir para o desenvolvimento do pelotão feminino Sub-23!
Chegamos a 2023 numa fase de muitas questões sobre o escalão Sub-23. Por um lado, assistimos a cada vez mais jovens rapazes a transitarem diretamente de juniores para equipas World Tour, como o fez Joshua Tarling esta temporada. Por outro vemos que no lado feminino este escalão é tratado de uma forma desigual, sem um calendário internacional definido, e com as disputas pelos principais títulos a não terem corridas próprias e singulares. Perante tal cenário, a luta pelo desenvolvimento do escalão Sub-23 feminino torna-se crucial e cada vez mais importante no mundo do ciclismo.
Jovens e cheias de sonhos! É assim que qualquer ciclista saída do escalão júnior chega ao profissionalismo. Finalmente têm a oportunidade de correr ao lado das suas grandes referências, dos nomes que vêem na televisão e que idolatram. Infelizmente, para 95% delas a distância que as separa é ainda demasiada. Muitas das ciclistas que até disputavam as primeiras posições no escalão júnior, chegam às Elites e deparam-se com um pelotão bastante mais forte, onde sofrem para “apenas” terminar uma corrida. O choque psicológico é de uma intensidade elevada. No espaço de meio ano passas de disputar as primeiras posições nas principais corridas para lutar simplesmente por terminar e chegar ao fim sem cair. Por muito forte que mentalmente alguma atleta seja, há sempre um impacto relativamente à mudança de resultados, até porque, à partida, os teus números de performance são melhores, dada a evolução natural de qualquer jovem atleta. Este cenário leva a que várias sejam as jovens que acabam por pendurar a bicicleta demasiado cedo.
Se olharmos ao top20 das últimas cinco edições dos Campeonatos do Mundo e da Europa, vemos que, relativamente a 2022, a suíça Fiona Zimmermann, 18ª na corrida de fundo do Mundial não competiu em 2023 nem está filiada por qualquer equipa. A neozelandesa Amelia Sykes, 19ª na mesma corrida, disputou apenas o campeonato nacional de contrarrelógio Sub-23, não tendo competido mais desde então. Recuando a 2018, regista-se que as duas primeiras do Campeonato Mundial de contrarrelógio júnior, Rozemarijn Ammerlaan e Aigul Gareeva, Campeã no ano seguinte, já não se encontram em competição, num top20 em que, surpreendentemente, apenas 4 atletas já não competem. Na corrida de Fundo, o número dispara para 8, se contarmos com Eva Jonkers, que fez um interregno em 2022 e agora tem disputado apenas corridas amadoras nos Países Baixos. Do Campeonato da Europa, registam-se 7 ciclistas no top20 da prova de fundo que já não competem, e 4 do contrarrelógio.
A tabela abaixo demonstra o número de atletas de top20 nos Campeonatos do Mundo que acabam por desistir da modalidade nos anos seguintes:
Top20 Contrarrelógio | Top20 Prova de Fundo | |||
---|---|---|---|---|
Ano | Atletas que já não competem | % de desistências | Atletas que já não competem | % de desistências |
2016 | 8 | 40% | 7 | 35% |
2017 | 7 | 35% | 5 | 25% |
2018 | 4 | 20% | 8 | 40% |
2019 | 5 | 25% | 5 | 25% |
2020 | Corridas não disputadas devido à pandemia do Covid-19 | |||
2021 | 1 | 5% | 1 | 5% |
2022 | 2 | 10% | 0 | 0% |
Se os números mostram que estas desistências são progressivas durante os 5 anos que se sucedem ao último ano de júnior, também demonstram a dificuldade existente em fazer a transição de Júnior para Elite sem contar com um escalão Sub-23 pelo meio, que possa ajudar as ciclistas a manterem-se competitivas e a saltarem depois para as Elites sendo capazes de disputar corridas e resultados de grande valia.
A formação de algumas equipas Sub-23 e de desenvolvimento ao longo dos últimos 2/3 anos tem sido fundamental para esta mudança positiva nos números, mas não chega. As mesmas equipas apenas conseguem colocar as suas atletas a competir em corridas de escalões mais baixos, já que não há um calendário Sub-23 definido. Até mesmo para a disputa do Título Mundial de Fundo, as Sub-23 têm de partir ao lado das Elites e disputar o título na mesma corrida que elas. Será coroada uma vencedora que, em 99% das vezes não será a primeira ciclista a cortar a linha de meta, numa corrida em que muitas outras serão forçadas a desistir dado o ritmo mais elevado das Elites. Apesar disso, e curiosamente, desde 1997 que o Campeonato da Europa conta com uma corrida Sub-23 de contrarrelógio, e desde 1995 com a prova de fundo, registando-se apenas um interregno em 2016.
A criação de um calendário próprio para as Sub-23 começa a ganhar forma, aos poucos, de forma lenta, e a edição inaugural do Tour de l’Avenir feminino dá muita força a este cenário. Estamos a falar do maior palco do Mundo! Avenir é a porta dos grandes campeões, desde a sua primeira edição masculina em 1961. É a corrida que dá a conhecer ao Mundo os grandes ciclistas da era moderna, onde, do lado masculino, já venceram Tadej Pogacar ou Egan Bernal. Contar com esta corrida para o pelotão feminino será a mostra de todos os talentos que estão prontos para dar o salto para as Elites e disputar corridas com estas, mas será também a chave para marcar uma transição do panorama do Ciclismo Mundial, com um progressivo calendário internacional de corridas para o pelotão Sub-23. Não chegará ter uma ou duas edições competitivas de Avenir. Será preciso haver uma continuidade no tempo, lançando ciclistas para o maior panorama mundial com potencial para discutir resultados e vitórias, num pelotão que com o tempo se vai tornando cada vez mais especializado.
Contar numa primeira edição com nomes como Gaia Realini, Shirin van Anrooij ou Fem van Empel é muito importante para atrair focos para a corrida. Falamos de uma ciclista que fez pódio na Vuelta a España e no Giro Donne em Elites, e de duas multi-campeãs da Europa e do Mundo no ciclocrosse. Quer queiramos admitir ou não, são já três grandes referências no ciclismo feminino, e nomes para os quais as mais novas começam a olhar. Sabendo da valia destas, os resultados obtidos irão com toda a certeza estabelecer um importante ponto de comparação para as restantes, e que só poderá progredir se o calendário crescer de forma progressiva, com a introdução de clássicas e outras voltas destinadas apenas às ciclistas Sub-23.
A paralelizar com o Tour de l’Avenir, temos apenas mais uma corrida Sub-23 na temporada: o Watersley Challenge, criado em 2021. Falamos assim de um calendário que conta com 5 corridas para Sub-23 em 12 meses em pleno ano de 2023: Avenir, Waterlsey, Campeonato Mundial de Contrarrelógio, Campeonatos Europeus de Fundo e de Contrarrelógio. Não incluímos o Campeonato Mundial de Fundo por não se disputar apenas para um pelotão Sub-23. Isto é visivelmente pouco para formar ciclistas competitivas num escalão transitório e em que muitas vezes se completa todo um processo de formação que já vem desde o início das camadas jovens.
Em Portugal, o Tour de l’Avenir feminino tem sido falado apenas por um único orgão de comunicação de ciclismo: o Ciclismo Mundial. E porquê? Não sabemos propriamente, mas sabemos que nem a própria Federação Portuguesa de Ciclismo se dignou a falar sobre o surgimento desta corrida aos seus associados e ao público em geral. Não houve qualquer trabalho de promoção de uma corrida histórica e que irá “mudar o jogo” no panorama do ciclismo feminino Sub-23. Para muitos, o ciclismo feminino não vende capas, não rende gostos nem partilhas, nem visitas a sites, e assim o ciclismo feminino é falado apenas em alguma participação de grande valia de Maria Martins, ou quando Annemiek van Vleuten volta a vencer uma corrida.
Que referências estaremos todos nós a deixar às jovens meninas ciclistas que querem um dia chegar aos grandes palcos se não lhes mostramos todas aquelas que se destacam pelo mundo fora nos mais diferentes palcos? Que divulgação estaremos todos nós a fazer do ciclismo feminino, das suas protagonistas e da importância que o mesmo vem assumindo de forma cada vez maior?
O exemplo terá inevitavelmente de partir de cada um de nós. Terá de ser mais demonstrado do que escrito neste texto. As coisas em Portugal demoram sempre o seu tempo, vivemos num país a 20 anos de distância daqueles com que procuramos rivalizar. Certo é que enquanto lá fora não tivermos um calendário de corridas completo, que possa dar às Sub-23 a oportunidade de crescer em corridas de nível .1, .Pro ou até .WWT, e ao mesmo tempo a possibilidade de competir apenas no seu escalão, que lhes possa proporcionar um crescimento sustentado até ao escalão Elite, também em Portugal o mesmo não se fará, e continuaremos a ter um calendário parco de corridas, a não ocupar todas as vagas a que temos direito em Campeonatos do Mundo e da Europa, e a limitar todo o potencial de formação que as nossas jovens apresentam.
Até quando?
Foto de Capa: Tour de l’Avenir Femmes