Entre Stradivari e a estrada: o fim da melodia de Marta Cavalli!

Há alguns anos atrás dei por mim atento a uma nova ciclista que se procurava afirmar no pelotão World Tour Feminino. O seu nome era Marta Cavalli. A italiana de Cremona, cidade periférica da região da Lombardia, prometia ser uma das grandes ciclistas da sua geração, mas uma violenta queda impediu uma brilhante carreira de suceder. Depois de vários anos a remar contra a corrente, Cavalli anunciou este domingo a sua retirada. Um momento que foi inesperado, mas que também encerrou um capítulo de sofrimento pessoal.

Antes de avançar, para uma experiência mais imersiva, recomendo acompanhar a leitura do texto com a seguinte composição musical.

Contexto histórico

Cremona é a reconhecida “Capital Mundial do Violino”. Berço histórico de um instrumento fino e elegante, características que marcaram a carreira de Marta Cavalli. Foi aqui onde o instrumento nasceu e onde se imortalizou nas mãos dos grandes mestres luthiers, como Stradivari, Amati e Guarneri. E se o violino é um instrumento perfeito para representar a forma de correr de Cavalli, é na forma dos seus criadores que a sua carreira se pode enquadrar na perfeição.

Andrea Amati é apontado, por muitos, como o pai do violino moderno, assim como o fundador da escola cremonesa. Tal como a família Amati lançou as bases do violino moderno, Cavalli começou a sua carreira construindo alicerces sólidos. A aprendizagem paciente no pelotão foi a fundação de um talento em crescimento, que ganhava forma no pelotão. Amati representa a fase inicial de Cavalli, onde a promessa começava a ser moldada.

A Fleche Wallonne de 2022 foi uma das grandes conquistas de Marta Cavalli (Foto: Getty Images)
A Fleche Wallonne de 2022 foi uma das grandes conquistas de Marta Cavalli (Foto: Getty Images)

Depois surge Antonio Stradivari, aquele que é, possivelmente, o melhor luthier da história. Com ele surgiu o Stradivarius, um violino conhecido pela sonoridade quente, equilibrada e de projeção única. Para Cavalli, Stradivari simboliza o auge da sua carreira. A conquista da Amstel Gold Race, da Fleche Wallonne e o 2º lugar no Giro d’Italia trouxeram de Cavalli o seu nível máximo de equilíbrio e beleza competitiva, encontrando uma elegância e panache sem igual.

Por fim, surgem os Guarneri, uma linhagem que teve como pai Andrea Guarneri. Os seus violinos eram mais robustos, intensos e dramáticos. O seu som é muitas vezes descrito como um apaixonado quase selvagem. Foram assim os últimos anos de Cavalli no pelotão. A paixão e a entrega eram as mesmas de sempre, mas o brilho… O brilho perdeu-se, e com ele apareceram a dor, a luta, o sacrifício e a resistência de quem não queria desistir.

O silêncio e a dor que conduziram ao fim

O grande momento de viragem da carreira de Marta Cavalli deu-se no Tour de France Femmes de 2022. Ao km 111 da segunda etapa, numa estreita faixa de rodagem, característica dos campos do norte de França, Cavalli caiu. Para a italiana, porém, esta não foi apenas mais uma queda. Quando Cavalli já abrandava atrás de uma queda que se deu poucos metros à sua frente, eis que chega uma ciclista numa velocidade desenfreada. Incapaz de colocar as mãos aos travões, a mesma varreu Cavalli a mais de 60 km/h, fazendo a italiana cair direta de cabeça ao chão.

Desde aí, Cavalli não mais foi a mesma. Apesar de em 2023 ainda ter conseguido vencer por 4 ocasiões, o registo nas maiores provas foi baixando progressivamente. Notava-se na italiana que algo não estava bem. O entusiasmo era menor, a força e a resistência pareciam dissuadir-se na elegância que sempre a caracterizou. Ainda sem o sabermos, escreviam-se as primeiras linhas daquele que seria o final da sua carreira.

2024 e 2025 foram já anos sem qualquer brilho. Cavalli era uma sombra de si mesma na bicicleta, apesar de, raras vezes, surgir um raio incapaz de abrir mais o horizonte. A italiana parecia quase que resignada. Talvez já o estivesse mesmo. A condição de antes não mais voltou, e, pelas palavras da mesma, a motivação também ficou longe. A última nota ecoou sem explosão, mas com uma profundidade que deixou marca. A Ciaccona não terminou num triunfo estrondoso, mas na verdade de uma digna despedida.

E se o Mundo “mais normal” tiver alguma justiça para repor, então que traga o que de bom ainda tem reservado para Marta Cavalli!

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