Beatriz Pereira: “De repente estou a estrear-me em grandes voltas e a cumprir o meu maior sonho: fazer o Giro d’Itália!”
Beatriz Pereira brilhou no último fim de semana nos Campeonatos Nacionais de Estrada, conquistando o título no contrarrelógio e na prova de fundo, com duas exibições de grande nível e que lhe deram também a segunda melhor prestação na geral em ambas as corridas. Depois de uma temporada com vários altos e baixos, Beatriz vai estrear-se em Grandes Voltas já amanhã, ao integrar o 7 da Bizkaia – Durango para o Giro Donne, a corrida por etapas mais longa do calendário feminino!
O Ciclismo Mundial esteve à conversa com a Beatriz, e aqui te deixamos o resultado de uma grande entrevista!
Ciclismo Mundial (CM) – Venceste as duas corridas nos Nacionais no último fim de semana, e mesmo sendo um triunfo nas Sub-23, conseguiste o segundo melhor tempo nas Elites em ambas as corridas! Foi ao encontro das tuas expectativas, ou superaste-te a ti mesma?
Beatriz Pereira (BP) – Essa é uma pergunta um bocadinho difícil de responder, porque eu tentei ao máximo não ter expectativas para ambas as corridas, mas por motivos diferentes. No crono, porque eu só faço um durante o ano, dois se fizer os Europeus, e por isso é sempre difícil saber o que vai acontecer. É óbvio que tenho a noção de quão confortável estou na bicicleta e na posição, mas há sempre mais trabalho que poderia ser feito, e, portanto, eu nunca sei se é bom ou não o suficiente. Foi principalmente porque o ano passado me tinha corrido tão bem, e foi a primeira vez em muitos anos, porque é algo que venho a trabalhar já desde cadetes e sempre foi uma fragilidade minha. Mesmo não tendo os resultados que eu queria, continuei a trabalhar o crono todas as semanas, durante imensos meses do ano, porque preparar um contrarrelógio não começa em abril ou junho para os nacionais, começa em janeiro e muitas vezes em dezembro. Tentei ao máximo ter as expectativas baixas porque o ano passado podia ter sido um acidente de eu feito um crono excelente e este ano ia tudo descambar outra vez. Tentei não pensar demasiado nas coisas e baixar as expectativas, porque, a partir daí, tudo o que vier é lucro, e correu bem, superou claramente as minhas expectativas! Não vou mentir que gostaria de ter o melhor tempo geral, porque o meu tempo deste ano seria o melhor da geral no ano passado, mas este ano não deu, porque houve alguém mais forte e ainda bem, ainda bem que o nível em Portugal é cada vez maior.

Estou feliz, foi uma surpresa este título, e no dia a seguir o título de estrada… O crono é algo que tens sempre mais no teu controlo, porque é a tua corrida, fazes como tu queres, e tudo o que correr mal, em princípio, é erro teu. Mas a estrada não. Na estrada há uma “roleta da sorte”, será que a corrida será feita como eu gosto ou não. No caso, o meu cenário ideal foi o que aconteceu, alguém pegar na corrida que não eu, fazer uma corrida dura principalmente a subir e selecionar o grupo. Eu até pensei que a melhor hipótese seria selecionar o grupo ao longo das voltas, mas acabou por não ser assim. Na primeira volta selecionaram o grupo todo, e eu já vinha a sentir dor de pernas, a pensar que era do calor, que estava mal, mas quando olhei para trás no final da subida vi que era a única Sub-23 e fiquei surpreendida (risos), porque isto não estava mesmo nos meus planos. Nem nos meus melhores sonhos eu pensava que na primeira volta ia estar isolada como Sub-23, e a partir daí foi tentar puxar ao máximo naquele grupo e ter a maior colaboração das Elites para que o espaço criado não voltasse a fechar.
O grupo que perseguia ainda esteve perto de se juntar a nós, mas na segunda subida, que voltou a ser seletiva, as mesmas que chegamos fomos as mesmas que saímos, porque quando fazes a subida num ritmo alto, quem ficou para trás na primeira vai ficar para trás na segunda. Honestamente, a meio da corrida vi que estava com mais três Elites, a Cristiana Valente já tinha atacado, e eu pensei “Uau, sofri tanto nestas corridas ao longo do ano, e finalmente vou ter uma corrida em que o meu sofrimento não foi masoquista como muitas vezes é lá fora”. Pensei em poder acabar tranquilamente, sem me chatear, mas depois o bichinho chegou e eu pensei “E se eu atacar aqui?”. E pronto, ataquei, a primeira vez não consegui sair, a segunda consegui, e a Vera depois chegou até mim. Fomos as duas até ao fim, e depois na última subida de paralelo consegui passar a Vera, e ser segunda na geral.
Foi um objetivo super momentâneo, não era algo que estava a contar. Se ganhasse os dois títulos Elite seria incrível, mas eu também tenho de ser realista, sou Sub-23 de segundo ano, a época não foi assim tão excelente, com uma progressão tão linear para eu exigir demasiado de mim e acho que foi excelente, foi mais do que poderia ter imaginado!

CM – Olhando aos dados do contrarrelógio, registaram-se diferenças bastante grandes em comparação a 2022. No teu caso, conseguiste melhorar 1:18 em 22km! Em termos de números, o que é que isto te diz?
BP – É óbvio que é sempre um bom indicador! Hoje em dia utilizamos os watts e a frequência cardíaca, porque são números mais “reais”. O tempo pode enganar dependendo do vento e do calor, o que neste caso não se verificou, porque o calor geraria um tempo maior, seria mais lenta e não foi o caso (risos). Especialmente o vento pode afetar muito os tempos e não quer dizer nada sobre a tua potência e a tua posição na bicicleta de contrarrelógio, porque às vezes as pessoas esquecem-se que o quão aerodinâmica tu podes ser é muito fundamental, principalmente nestes contrarrelógios onde fazes médias superiores a 40km/h, a posição é muito, muito importante! Mantê-la o mais agressiva e aerodinâmica possível é, eu diria, mais fundamental que qualquer potência que tu possas colocar na bicicleta. A minha potência foi decente, não diria extraordinária, mas eu também estou mais leve que no ano passado, por isso seria normal produzir menos watts. Se o tempo baixou e havia vento também este ano, eu diria que apesar de ter menos potência, o balanço é bastante positivo.
CM – Falaste que ninguém da Federação te entrevistou no final das duas vitórias. Que impacto é que essa situação teve para ti, e que mensagem passa às atletas mais novas que te viram vencer?
BP – Honestamente acho que fiz um resultado mais que positivo nestes nacionais! Ver o impacto que teve na comunicação pela Federação, foi a falha de uma coisa tão simples como entrevistar uma Campeã Nacional, seja ela de que escalão for, porque as cadetes e juniores também não foram entrevistadas. Lembro-me de ser pequena, ganhar corridas e pensar “Uau, vou fazer uma entrevista, as pessoas querem saber o que eu tenho a dizer, e isso era algo que eu ficava vaidosa”. Eu quando era cadete e júnior fazia entrevistas, e agora não faço. Penso que, se queremos promover o ciclismo feminino, temos de começar pela juventude. No grupo que escapou no Nacional, tínhamos duas juniores de primeiro ano, e acho que elas deveriam ter sido também entrevistadas, porque a Daniela Simão e a Raquel Dias estão a andar muito e isso mostra que temos jovens de muita qualidade, que devemos mostrar e partilhar! No masculino, entrevistaram-se todos os escalões, no feminino só as Elites. Não sei explicar o porquê.
“Tive um ataque de ansiedade a meio de uma corrida e foi uma experiência algo traumática, porque se isto me aconteceu uma vez, isto pode acontecer-me para sempre! Voltei às consultas de psicologia e consegui parar a bola de neve! (…) Aprendi a saber pará-la quando ela ainda é pequena, mas isto não é uma ciência exata!”
Beatriz Pereira
CM – Olhando à tua temporada, tiveste alguns altos e baixos, com estreia no World Tour, corridas canceladas, paragem por estares doente. Como viveste todos estes meses até chegares a junho?
BP – Eu diria que esta época vale por três e ainda vamos em junho! (risos) Isto ainda não tinha falado publicamente, mas em dezembro tive um estágio com a Bizkaia – Durango em Benidorm, tive muito boas indicações, estava a andar bem, e, entretanto, em janeiro chegou a época de exames. É uma fase sempre um bocadinho destrutiva para mim, porque durmo pouco, passo muitas horas sentada a estudar e é um período duro. Tive também o segundo estágio com a equipa, desta vez em Almuñecar, e já não tive os mesmos indicadores. Saí do estágio e fui para a Women Cycling Pro Costa de Almeria, corrida UCI que correu mal, mais por motivos psicológicos. Tive um ataque de ansiedade a meio da corrida e foi uma experiência algo traumática, porque se isto me aconteceu uma vez, isto pode acontecer-me para sempre! Voltei às consultas de psicologia e consegui parar a bola de neve de pensamentos e perguntas “E se?”. E se não paras a bola de neve a meio, ela derruba-te. Aprendi a saber pará-la quando ela ainda é pequena, mas isto não é uma ciência exata.
Sem dúvida que estou melhor! Ao longo do ano fui fazendo Copas de Espanha, fui melhorando a todos os níveis, mas nunca estive a um nível incrível. Fui à Bélgica e aos Países Baixos, e acabaram por ser canceladas quase todas as corridas, menos a Ronde van Drenthe, que não acabei, mas onde também não era um percurso para mim. Naqueles dias nem sabíamos se iríamos correr. Algumas queriam, outras não, com neve até aos ombros… Uma loucura! Desde aí vim para casa, treinei muito bem, porque em maio a equipa tinha o melhor calendário. Eu sabia que não ia fazer a Vuelta, mas trabalhei duríssimo, atingi os melhores números da temporada para estar bem em maio, e apanhei uma amigdalite que me deixou de rastos. Foi duro, porque também sofri várias amigdalites o ano passado, e fiquei mal do problema e do antibiótico que tive de tomar.

Nas duas corridas da Copa de Espanha que fiz em abril estava com a amigdalite, e correram-me pessimamente mal, mas tive a esperança de que as pessoas vissem o meu esforço e perseverança. Aconteceu o contrário, não estava a andar bem, não ia fazer as corridas de maio. Treinei para estar bem em maio e de repente não ia fazer nenhuma corrida em maio! Comecei a colocar as coisas em cima da mesa, porque já o ano passado não tinha sido fácil, e este também não estava a ser. É difícil todas as semanas colocares 20 a 25h na bicicleta, estar a atrasar a minha licenciatura para me dedicar à bicicleta, para depois ficar em casa. Passou-me tudo pela cabeça, e pensei se o meu lugar seria verdadeiramente no ciclismo. Como disciplinada e focada que sou, os pensamentos continuavam à deriva, e eu continuava a ir treinar! Podia não fazer um treino 100% à risca, mas era 95% à risca. Falei com o meu treinador para não me exigir tanto, porque não ia correr, e está tudo bem.
Com o suporte da minha família, do meu namorado, do Tiago Machado, que foi também um grande apoio, consegui recompor-me. No final de maio tive a oportunidade de fazer a Vuelta a Andalucia com cinco dias duríssimos. Sabia que me estavam a dar a oportunidade para eu mostrar que era capaz (ou não), e eu mentalizei-me que ia acabar, não importava o que acontecesse! Sofri dia após dia porque não corria quase desde março e chegar um pelotão de mulheres cheias de ritmo World Tour e eu ali como um patinho… sofri muito, mas acabei! Depois chegou-me o convite para os Pirenéus, Copas de Espanha, Nacionais, e quando dou por mim estou em Itália! A minha época foi isto. Há dois meses estava a pensar se não devia desistir do ciclismo, e de repente estou a estrear-me na minha primeira grande volta e a cumprir o meu maior sonho que é fazer o Giro d’Itália!
CM – Sentes que chegas efetivamente no melhor momento de forma da temporada, e se calhar da carreira?
BP – Sim! Se isso é suficiente, digo daqui a dez dias! (risos) Gostava de poder dizer agora que vou ser a (Annemiek) van Vleuten com muita segurança, não sou, mas daqui a dez dias eu conto-vos! Vou dar tudo o que tenho para terminar o meu primeiro Giro, mas sei que vai ser um desafio e peras!
CM – O que te parece o percurso do Giro deste ano?
BP – Eu não quero morder a minha língua, mas comparativamente aos anos anteriores eu diria que é ligeiramente menos duro. Temos dois dias com mais de 2000m de acumulado, mas todos os restantes têm menos. Em Itália seria de esperar que isto fosse sempre a subir, não é, mas eu digo sempre que o duro do percurso são as ciclistas que a fazem. Se saíres “à Portuguesa”, qualquer percurso se torna duro, não importa se tem 200km ou 4km. Eu vou tentar ir dia a dia, temos ali os últimos dois dias na Sardenha…
Eu diria que é dos Giros dos últimos anos que menos sobe, espero que isso seja um ponto a favor, porque apesar de em Portugal eu me dar bem a subir, comparativamente com as melhores do Mundo, eu não subo nada. Esperemos que um dia isto seja diferente, mas neste momento é assim. Aquelas subidas como o Hautacam, que apanhamos nos Pirenéus, não é propriamente o meu ponto forte, portanto, parece-me que é menos duro que nos anos anteriores, mas vai ser muito duro para mim. Vamos dia a dia! Sobre o crono, é relativamente pouco técnico e esperemos que a minha cabra e a minha posição valham de alguma coisa! (risos)
As etapas difíceis acabam por ser aquelas como a 5, em que temos uma subida nos primeiros 30km (Cima Coppi), e é muito difícil passar aquela subida. Se não passas, vais ter de fazer os outros kms todos a penar, e vais perder sempre tempo para o pelotão, mesmo no terreno plano. Para mim, é a etapa mais difícil, mas se passar a 5, devo conseguir passar tudo o resto.

CM – Que impacto poderá ter a ausência de alta montanha, que foi sempre um fator decisivo nos últimos anos? Podemos ter uma corrida mais aberta?
BP – Eu diria que sim, porque a (Annemiek) van Vleuten não está tão forte como nos últimos anos, e, portanto, acho que teremos uma disputa mais aberta! Assim espero, porque é sempre melhor para o espetáculo. Eu aprecio muito o que a van Vleuten e a (Demi) Vollering fazem, e quem me dera um dia ser como elas, mas eu também vejo ciclismo e sei que é mais porreiro ser uma disputa renhida do que ter alguém que anda muito mais que as outras todas e que ganha tudo. Espero que seja uma corrida muito disputada, e acho que o percurso até o favorece, colocando as restantes mais ao nível da van Vleuten.
CM – O que sentes que tu e a equipa podem fazer neste Giro?
BP – Ainda não tivemos a primeira reunião, por isso ainda é apenas o que eu penso e nada definido. Tentaremos animar a corrida como todos os anos e entrar nas fugas. Temos conhecimento das nossas limitações e daquilo que andamos, e, portanto, vamos tentar as fugas, os ataques, as classificações secundárias, e, portanto, esperamos conseguir estar um ou mais dias na frente, na fuga do dia, para dar espetáculo, aparecer e justificar o porquê de sermos uma das equipas com mais convites do Giro!
CM – Tens algum objetivo especial ou uma etapa que tenhas marcada?
BP – Estou muito entusiasmada com este contrarrelógio, se bem que é um esforço muito curto, não me favorece assim tanto, mas é uma oportunidade para comparar o meu crono com o das melhores do Mundo, que é algo que não tenho todos os dias. Eu só fiz um crono internacional, que foi o dos Campeonatos da Europa no ano passado, que foi bom, eu diria, e quero mais ocasiões para me poder comparar e perceber se estamos ou não a evoluir. O segundo grande objetivo é o de acabar, que para muitos pode parecer fácil e simples, mas vai ter o seu quê de dificuldade e superação. Eu quando disse ao meu treinador que ia fazer o Giro, ele disse-me que se eu acabar será o maior feito da minha carreira, e tem razão. Se eu conseguir entrar numa fuga será incrível, mas eu sou nova, sei que tenho a minha limitação daquilo que é o conhecimento a nível tático, que falta muito em Portugal, e para mim saber quem tenho de seguir para estar na fuga nem sempre é fácil. Assim tentarei se as pernas me deixarem!
CM – O que esperas levar da corrida?
BP – Com a massa que eu estou a comer, uns quilinhos a mais! (risos) Acho que não, que com as calorias que vou gastar nos próximos dias não há quilos a mais que possa levar para casa! Espero levar muita experiência, isto é uma tela em branco na minha cabeça, já fiz várias corridas UCI por etapas, mas esta é a primeira World Tour, vou estrear-me numa grande volta o que é, no mínimo, assustador! Quero aprender, acaba-se por sofrer mesmo muito, isto é comer a maior quantidade de massa e arroz que consegues comer e sofrer em cima da bicicleta, mas nós gostamos e espero aprender muito tática e fisicamente. As minhas colegas de equipa dizem-me que agora é que me vou fazer uma mulher, que até agora sou uma menina e só depois disto é que vou ser uma mulher, e é isso, é gerir, é aprender, e espero que seja a bem e não a mal, porque as minhas colegas de equipa sabem tanto mais!
Em nome de toda a equipa do Ciclismo Mundial, desejamos à Beatriz e à Bizkaia – Durango a melhor das sortes para este Giro, e um muito obrigado pela disponibilidade para esta grande entrevista!