Ana Santos: Uma história de Superação!

O Ciclismo Mundial esteve à conversa com Ana Santos (X-Sauce Factory Team), a atual tetra-Campeã Nacional de Ciclocrosse, que no passado dia 29 de maio, no XCO Internacional do Fundão C1, sofreu uma miocardite, uma inflamação do músculo do coração, que a obrigou a parar durante vários meses. Após aquele que foi o período mais difícil da sua carreira desportiva, e à imagem do que já tem vindo a fazer, Ana Santos aceitou prontamente o convite para esta entrevista, que se prolongou em meia hora de conversa sobre vários tópicos. Desde a saúde física e mental, até à forma como concilia a carreira de ciclista com a Licenciatura de Fisioterapia, abordamos neste artigo todos os pontos de uma conversa imperdível do primeiro ao último momento!

Ciclismo Mundial (CM): 29 de maio, XCO do Fundão… Conta-nos o que aconteceu nesse dia, que sensações estavas a ter, como te encontravas?
Ana Santos (AS): Eu tive uma amigdalite na semana anterior, e até cheguei a publicar nas redes sociais que tal sucedeu, sendo algo que me acontece com alguma frequência. Acabou por ser das “mais amigas” que tive, passou em cerca de três dias, nos quais não treinei, mas quando regressei senti que não estava no meu normal. Tinha dores musculares e acabei por ignorar, porque é algo comum e que todos temos. No dia antes da prova fiz o reconhecimento, e senti alguma fadiga, com as pernas a doer. Cheguei à noite e tinha a mesma sensação, até comentei com amigos meus, mas não valorizei muito, porque é algo normal. No dia da corrida, voltei a ter as mesmas sensações no aquecimento, mas ignorei e procurei ter pensamentos positivos, como qualquer atleta o faz, para poder dar o meu melhor, acreditando sempre que poderia vencer a corrida.

“O meu pai conhece-me melhor do que ninguém e diz que do lado de fora não dava para perceber o sofrimento em que eu estava. Chegamos a rever os vídeos, várias vezes, e era impercetível a dor que eu sentia.”

Ana Santos

Durante a primeira volta da prova sentia-me um pouco cansada, mas nada de mais, e até estava na liderança. No final da segunda volta, numa zona mais técnica em subida, a Raquel Queirós cometeu um erro, mas conseguiu passar, e eu, atrás dela, tive de desmontar da bicicleta. Tentei de seguida fechar o espaço que se abriu, mas começou a ser impossível! Tentei, tentei, tentei e não saía dali. Estava a custar-me muito e quanto mais puxava por mim, parecia que mais para trás andava. A Joana Monteiro, que vinha atrás de mim, começou a alcançar-me, e eu tinha cada vez sensações de maior fadiga, e custava-me respirar. Via as adversárias a passarem por mim, e eu estava no meu limite. Sei que na altura ainda pensei em desistir. Cheguei, inclusive, a passar pelo meu pai, e a dizer que “Não dava mais”, mas ele pensava que era pelo psicológico de estar a ficar para trás, e disse-me para continuar, e dar tudo.

A resposta foi uma miocardite, e que teria de ser internada. Foi aí que me caiu tudo!

Ana Santos

A verdade é que eu devia ter desistido, porque ultrapassei os meus limites. Estava muito mal, mas tinha prometido a mim mesma, nos Mundiais em 2020, que tinha sido a única prova em que eu desisti, porque foi uma sensação horrível. Na quinta e última volta, de tão fraca que estava, acabei por cair a meio da subida mais inclinada do circuito. Mesmo assim, levantei-me, fiz o resto da subida e continuei até ao fim. Quando cheguei ao fim, sentia-me muito fraca, estava quase a desmaiar. Tentaram levantar-me, e eu estava a hiperventilar. Dizem que tive convulsões, mas eu não me lembro. Depois disso foi tudo muito rápido, chegou a assistência médica, puseram-me oxigénio e comecei a melhorar. Segui para o hospital, mas já me sentia normal, achei que estava tudo bem. Passei muito tempo à espera de análises, mas achava que tudo estaria bem e já tinha passado. Depois de ter feito vários exames, disseram-me que tinha uma miocardite e fui internada no hospital de Matosinhos.

Ana Santos em ação na Taça do Mundo de Petrópolis, em 2022 (Foto: Fraban Photos)

CM: Como foi esse primeiro impacto dos resultados dos exames?
AS: Eu lembro-me perfeitamente que a médica veio ter comigo, a dizer que não tinha boas notícias. Não era Covid, o que me deixou aliviada, mas então o que teria? A resposta foi uma miocardite, e que teria de ser internada. Foi aí que me caiu tudo! Não quis acreditar, porque quando era mais nova cheguei a ter um episódio de internamento, então foi como se revivesse tudo outra vez. Das duas vezes que fui internada, não estava à espera que fosse necessário. Eu sentia-me bem fisicamente, mas interiormente não estava, e foi um choque grande, mas senti que o pior foi ainda o que sucedeu a seguir.

CM: Entretanto, percebes que tens de ficar algum tempo sem competir… Como é que uma atleta tão jovem consegue lidar com uma situação destas?
AS: As notícias no hospital chegaram-me aos bocados. Eu lembro-me que depois do Fundão teria uma Taça do Mundo em Leogang, na Áustria. Perguntei se poderia ir, e a médica disse para esquecer essa competição, o que me deixou bastante triste, mas pensei que seria só uma. À medida que estava internada no hospital, foram-me dizendo que esta lesão precisava de três meses de recuperação, uns dias depois já me diziam que o mínimo eram três, mas o máximo eram seis.

“Lembro-me de estar lá uma amiga de visita e eu desabar a chorar, porque nunca na minha vida me imaginei estar durante seis meses sem praticar desporto.”

Ana Santos

O pior não era só o não poder andar de bicicleta, era não poder mesmo fazer qualquer desporto. A médica disse-me que o máximo que poderia fazer eram caminhadas de 4km, mas o que representa isso para um atleta de alta competição? Acabou por ser um impacto muito grande, fiquei muito triste e chorei bastante, mas comecei a pensar depois de forma diferente. Com a saúde não se brinca, e era o meu coração, por isso tinha de respeitar esse tempo. Os primeiros dias em casa não foram nada fáceis. Este era o meu melhor ano para conciliar a faculdade com o ciclismo, porque tinha feito para estar mais livre naquele segundo semestre, que é também a fase em que há maior carga de competições. Quando saí do hospital, o semestre já estava terminado, ou seja, estava pronta para ficar 100% focada no ciclismo e nas competições. Acabei por já não ter de estudar, nem poder treinar e competir. Eu que estava habituada a fazer cem coisas por dia e a andar super organizada de tempo, de um dia para o outro acordava e não tinha nada para fazer. Sinto que essa parte foi a mais complicada para mim, perceber que já não tinha a mesma vida que antes, que não podia treinar, e que acordava e não tinha coisas para fazer, eu que sempre fui uma pessoa que não gosta de estar parada.

Ana Santos no XCO da Shimano Super Cup de Banyoles (Foto: David Simó)

CM: Como se alterou a tua rotina sabendo que não poderias treinar e competir?
AS: No início foi super difícil, e eu dava por mim a acordar e a chorar, porque me apercebia da nova realidade, mas tive de colocar os pés na terra e perceber que não podia fazer nada quanto a isso. Tive de respeitar o tempo, e então aos poucos fui começando a fazer coisas que me deixassem na mesma feliz, porque eu senti que os médicos falharam ao não perceber que eu era uma atleta de alta competição. O desporto é um bocadinho o ópio dos atletas de alta competição, e eu não me contentava em fazer as caminhadas de 4km. Aos poucos fui introduzindo alguns exercícios na minha rotina, por mais pequenos que fossem, porque eu precisava de me sentir a suar, precisava de sentir o meu corpo a mover-se. Fui fazendo alguns exercícios que não puxassem muito por mim, controlando sempre pelas minhas sensações, mas era assim que me sentia bem, acordar e fazer exercício. Fui adaptando assim o meu dia. Se calhar se os médicos me perguntassem se eu fazia alguma coisa, eu dizia que não. Não correu mal, mas não o devia ter feito! Eu acho que nunca coloquei o meu coração em risco, mas deviam ter tido o cuidado de me deixar confortável para fazer esses pequenos exercícios, porque era o desporto que me fazia sentir bem! Quanto ao resto, aproveitei esta nova fase para não ter tantas preocupações, aproveitei este tempo para estar com a minha família, com os meus amigos, com o meu namorado, para ter a vida de jovem adulta que às vezes eu não posso ter. Mentalizei-me que tinha de aproveitar esta nova fase, porque provavelmente não a voltaria a ter tão cedo.

CM: Qual o impacto que a situação teve nos teus estudos?
AS: No ano anterior, tive de abdicar de algumas aulas de uma cadeira mais prática, porque tive um mês de treinos em Espanha. Como o meu curso é o de fisioterapia, não tinha como estar nessas aulas, e então acabei por deixar para este semestre, e por isso tive muito pouca coisa para fazer. A minha faculdade não me permitia inscrever a mais cadeiras, e por isso também aproveitei para fazer estas aulas e ter mais tempo para o ciclismo. Os planos acabaram por sair ao lado, e fiquei sem o ciclismo, já não tendo faculdade para fazer naquele semestre.

“A X-Sauce esteve sempre lá para mim, a psicóloga da equipa também me ajudou com todas estas questões mentais e foi bastante importante.”

Ana Santos

CM: Com 20 anos enfrentaste uma situação que podia mudar a tua vida. Como é que se encontram forças para lidar mentalmente com tudo isto? Que desafios surgiram e como os superaste?
AS: Mentalmente não foi fácil, ainda por cima quando tens objetivos traçados e percebes que foram todos por água abaixo. O perceber isto tudo foi pelo choque. Apercebi-me que com isto não se brinca e teria de saber lidar com isto de qualquer forma. Procurei sempre ver o lado positivo da situação, porque negativos já tinha muitos. Foi ver esse lado, viver o dia a dia, e esperar que chegasse o momento em que estivesse tudo bem e pudesse voltar.

Ana Santos celebrando a conquista do quarto título nacional consecutivo de Ciclocrosse em Elites! (Foto: UVP/FPC)

CM: Como reagiu a equipa a tudo isto? Sabendo que vocês fazem exames, que estão sempre a ser acompanhados medicamente, ficaram certamente surpreendidos… Como é que te acompanharam depois em todo o processo?
AS: Foi uma surpresa para toda a gente. Muitas pessoas já me enviam mensagens a dizer que a vacina do Covid pode causar miocardites. Eu não sei, nem vou especular, mas era impossível alguém prever esta situação, por mais que eu estivesse bem no início ou na semana antes. Foi algo inesperado. A equipa esteve sempre a meu dispor, mas foi muito difícil para eles, porque ia começar o período de maior nível de competições internacionais. Era importante a equipa estar lá, ainda por cima sendo eu a única atleta feminina. Eles sempre me apoiaram! Tive pessoas que me perguntaram se eu ia sair da equipa, se eles ainda me queriam, mas a X-Sauce esteve sempre lá para mim, a psicóloga da equipa também me ajudou com todas estas questões mentais e foi bastante importante. A equipa nunca me descartou e esteve sempre à espera do meu regresso.

CM: Conseguiste superar toda a recuperação, como é que foram as diversas fases, e que desafios encontraste?
AS: A primeira fase foi sem dúvida a mais díficil, a adaptação a toda uma nova realidade, mas sinto que esta situação me fez bem. Acredito sempre que as coisas acontecem por algum motivo, e se calhar era porque eu precisava. Estes seis meses permitiram-me recuperar totalmente, e aproveitar uma vida que não estava habituada a ter, estar com os meus amigos de férias e não me preocupar com os treinos. Senti que isto me deu uma aprendizagem enorme quanto a traçar objetivos, a dar mais valor à saúde e à vida, e que tenho agora uma maior motivação que as minhas colegas, porque senti falta disto. Agora estou super motivada! No início foi difícil, porque foram seis meses parada, o corpo já não estava habituado, mas agora vejo evolução semana após semana, e isso é gratificante! É um processo em que é preciso ter paciência, e em que tenho de ter calma comigo mesma, sem apressar as coisas.

“Vou correr dia 8 de janeiro, em Labruge, e depois vou fazer o Campeonato Nacional!”

Ana Santos

CM: Agora de volta aos treinos e recuperada, vais regressar no Nacional de CX, já no dia 15 de janeiro. Como tem sido a preparação para a corrida e quais os teus objetivos para o regresso?
AS: Pretendo fazer uma corrida antes do Nacional para ver onde estou. Vou correr dia 8 de janeiro, em Labruge, e depois vou fazer o Campeonato Nacional. Se tiver de dar o título, não o quero fazer de mão beijada, mas vou com o pensamento de conquistar o meu quinto título nacional de ciclocrosse! Se não conseguir, de certeza que as adversárias tiveram de se esforçar, mas o meu objetivo é sempre dar o meu melhor e vou lutar pelo título!

Ana Santos no XCO de Chelva (Foto: David Simó)

CM: Podemos esperar uma Ana ainda mais forte nos trilhos?
AS: Sim! Estes seis meses deram-me muita força, ainda para mais para provar a mim mesma, não aos outros, mas a mim mesma, que estive lá em baixo, e com trabalho e sacrifício consegui voltar lá acima! É isso que eu pretendo este ano, mostrar a mim mesma que passados estes meses sou capaz de treinar, concretizar mais um objetivo, chegar mais à frente, e que sou capaz, apesar de todas as adversidades!

“Se precisam de ajuda, falem com alguém, porque às vezes não é estarem mal, é simplesmente o precisar de desabafar, e eu sinto que isso é importante!”

Ana Santos

CM: Qual a maior aprendizagem que levas com esta situação?
AS: Eu sinto que foi muito isto. Claro que os objetivos são sempre importantes de se traçar, mas se me perguntares quais são os meus objetivos para 2023, não te vou dizer como disse o ano passado que queria um top10 a nível mundial, queria ser Campeã Nacional de XCO e de Ciclocrosse. Este ano vou-te antes dizer que quero lutar para estar bem nas competições, alcançar títulos nacionais, fazer bons lugares lá fora… mas acima de tudo isto, respeitar o meu corpo e a minha saúde. O querer alcançar títulos nacionais e fazer bons lugares lá fora está sempre na minha cabeça, mas este ano não será o meu principal foco. A maior aprendizagem que esta situação me deu foi “Para que traçar objetivos tão específicos, se uma situação fora do teu controlo te pode arruinar tudo e não conseguires concretizar os teus objetivos?”. Outro ponto importante foi que sem saúde não conseguimos fazer nada, portanto, trata de ti, da tua mente, do teu físico, e depois vem o resto. Foi dos processos mais importantes que consegui aprender com toda esta situação. Se o psicológico não está bem, é muito fácil tudo o resto também não estar. Portanto, sinto que foi uma grande aprendizagem a nível mental e de criação de objetivos.

Ana Santos na Taça do Mundo de Petrópolis, em 2022, concluída no 7º posto! (Foto: Fraban Photos)

CM: Que mensagem deixarias para os jovens atletas que estejam a passar por dificuldades físicas e/ou mentais?
AS: Há uns tempos decidi fazer um story, a falar sobre o meu processo após os seis meses, e houve pessoas a dizerem-me “Obrigada Ana por partilhares isto!” e a contarem-me as suas próprias histórias.. É necessário realçar que o que é menos bom, não é exposto nas redes sociais. Sim, os atletas profissionais também têm dias em que não lhes apetece ir treinar, em que nos sentimos cansados e que preferimos ficar em casa. Afinal, somos todos humanos e isto faz parte. O importante é perceber se tal é recorrente, se precisamos de desabafar com alguém que nos possa ajudar, que nos faça perceber o verdadeiro porquê de fazermos isto. Se precisam de ajuda, falem com alguém, porque às vezes não é estarem mal, é simplesmente o precisar de desabafar, e eu sinto que isso é importante! E é para isto e muito mais que um psicólogo serve, o profissional não existe só quando há um reencaminhamento ou quando já se está mesmo mal. É o maior estigma que pode haver! O psicólogo está lá também para potenciarmos os nossos pontos fortes. E o que não se deve esquecer é que “uma mente forte, é um corpo forte”. Não tenham vergonha de se exporem ou de pedirem ajuda!

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