Liège-Bastogne-Liège, “A Velha Senhora”
Com o adiamento da clássica Paris-Roubaix para outubro, a Liège-Bastogne-Liège passa a representar o terceiro monumento da temporada de ciclismo de 2021, depois da Milão-Sanremo e da Volta à Flandres. Trata-se da prova que encerra tanto o tríptico das Clássicas das Ardenas (após a Amstel Gold Race e a Flèche Wallone), como a emblemática Primavera belga do ciclismo.
Duas semanas depois da Ronde van Vlaanderen, a grande corrida da Bélgica do Norte, chega a vez da prova maior para os habitantes da Valónia, a região Sul deste país, pequeno em tamanho, mas gigante em tudo o que diz respeito ao ciclismo.
La Doyenne, ou a “Velha Senhora”, como também é conhecida, realiza-se desde 1892, o que lhe confere o estatuto de monumento ciclístico mais antigo e uma das provas velocipédicas mais ancestrais da história da modalidade.
Por detrás da criação da corrida, como acontece em tantas outras provas ciclísticas, esteve um órgão jornalístico, no caso o L’Express, uma publicação franco-belga que procurava promover a sua imagem, mas também a região francófona da metade Sul da Bélgica.
Refira-se que a Valónia era tradicionalmente mais rica e desenvolvida do que a região Norte da Flandres, o que acaba por explicar a incepção da Liège-Bastogne-Liège de forma tão precoce, quando comparando com os restantes monumentos. Ao contrário do que viria a suceder anos mais tarde, em particular após a Primeira Guerra Mundial, o acesso a bicicletas e a prática do ciclismo no final do século XIX era algo de exclusivo, apenas ao alcance das elites mais abastadas. As corridas velocipédicas eram como que um desafio entre cavalheiros, autênticos pioneiros que exibiam orgulhosamente as suas máquinas.
A 1ª edição da Velha Senhora teve lugar no ano de 1892, na altura com partida e chegada numa icónica localidade da região de Liège: Spa. A Spa-Bastogne-Spa inaugural foi disputada apenas por amadores e contou com 33 participantes, sendo que somente 17 terminaram a epopeia de 250 km. O vencedor dessa edição inaugural foi um ciclista natural de Liège, como eram a maioria dos corredores, Léon Houa, que completou o desafio em 10 horas e 48 minutos, com o 2º classificado a terminar a prova 22 minutos depois.
No ano seguinte, Houa voltaria a triunfar, desta feita com meia hora de avanço sobre a concorrência. Em 1894, na primeira edição aberta para profissionais, Houa viria a conseguir o hattrick, numa corrida onde fechou em 4º lugar Maurice Garin, que mais tarde viria a ser o primeiro vencedor da Volta a França.
Seguiu-se um interregno de 14 anos na organização da prova, que apenas regressou em 1908, ano em que se adotou o formato Liège-Bastogne-Liège. Durante a Primeira Guerra Mundial, a corrida voltou a estar suspensa, regressando em 1919. No período da Segunda Grande Guerra, a prova também sofreu cancelamentos, mas tal não aconteceu em todos os anos do conflito, acabando por se realizar nos anos de 1943 e 1945.
Seria no pós-Segunda Guerra Mundial que a Velha Senhora se afirmaria como prova de relevo a nível internacional, começando a atrair as grandes estrelas do ciclismo europeu.
Como seria expectável, esta é uma competição historicamente dominada pelos belgas, não só pelos do Sul, mas também, como não poderia deixar de ser, pelos divinos seres que habitam a região Norte, os flamengos.
A dicotomia Norte-Sul tem um enorme peso na Bélgica, representando uma divisão linguística, cultural, e também socioeconómica, com o Sul a ser uma região historicamente mais desenvolvida, possuindo uma forte ligação a França. A afirmação da Flandres perante a Valónia no contexto nacional belga sempre foi um forte desejo dos nortenhos, uma questão de orgulho regional, mas também de luta social, com o ciclismo a ter um papel muito importante nesse processo.
A explosão da Flandres ciclística não se refletiu apenas no sucesso da Ronde van Vlaanderen e na afirmação e incremento de qualidade dos ciclistas flamengos, acabando por extravasar para as mais diversas provas, entre elas a competição mais importante para os valões, a Liège-Bastogne-Liège.
Além disso, com o crescimento da importância da bicicleta na sociedade e a consequente explosão da prática ciclística no período entre guerras, estas emblemáticas provas eram o mote perfeito para transpor para o ciclismo as grandes questões sociais, arrastando multidões em cada metro de estrada.
Os grandes campeões
Tal como na Milão-Sanremo, o recordista de vitórias neste monumento é, nada mais nada menos, que o Maior de Todos os Tempos, o Canibal, Eddy Merckx, o único a ter levado a Velha Senhora para casa por cinco ocasiões: 1969, 1971, 1972, 1973, e 1975!
A vitória mais emblemática de Merckx na Liège-Bastogne-Liège terá sido na edição de 1971, que ficou marcada por condições extremas de frio, chuva, e neve. A 92 km da meta, o Canibal lançou o seu ataque em solitário, alcançando uma vantagem de 5 minutos sobre a concorrência. No entanto, acabaria por quebrar de forma fulminante, sendo alcançado por Georges Pintens já perto do final. Apesar de completamente esgotado, Merckx conseguiu aguentar junto de Pintens, antes de o bater ao sprint num último assomo de força. Conta-se que depois da prova, o Canibal tomou banho sentado numa cadeira.
Durante os anos 70, também brilhou nesta prova outro nome maior do ciclismo mundial: Bernard Hinault, vencendo em 1977 e 1980, em ambas as ocasiões através de performances épicas sob condições dantescas. Em 1980, numa das edições mais fustigadas pela neve e pelo frio, o Texugo atacou a 80 km da meta, terminado com uma vantagem de 10 minutos para os rivais. Apenas 21 dos 174 participantes terminaram essa edição.
A década de 80 ficaria marcada pelo domínio de Moreno Argentin, o classicista italiano que conseguiu alcançar quatro triunfos na La Doyenne e também outros três na Flèche Wallonne, valendo-lhe na altura o estatuto de Rei das Ardenas.
A força dos italianos continuou a sentir-se nos anos 90 e início de 2000, com vitórias de Michele Bartoli, Paolo Bettini, e Davide Rebellin. A Itália é o segundo país com mais vitórias na Liège-Bastogne-Liège, com 12, longe das 59 vitórias belgas, mas destacada das 6 vitórias suíças e 5 francesas.
A crescente globalização do ciclismo veio esbater o domínio dos belgas na decana corrida. Nos últimos 20 anos, apenas um belga venceu a prova (Philippe Gilbert em 2011) e se recuarmos ainda mais percebemos que, desde 1979, apenas por quatro ocasiões a Velha Senhora ficou em casa, com ciclistas das mais variadas latitudes a inscreverem o seu nome neste cobiçado troféu.
Em 2006, surge a primeira vitória do espanhol Alejandro Valverde, ele que viria também a tornar-se uma figura de proa desta emblemática corrida, colecionando mais três triunfos: 2008, 2015, e 2017, e juntando-se a Moreno Argentin no degrau abaixo de Merckx. Em 2021, “Bala” apresenta-se num bom momento de forma, sendo que estará certamente focado em realizar um dos grandes feitos do ciclismo mundial: igualar as cinco vitórias de Merckx na Liège, um dos míticos recordes do Canibal. De referir que, por divina coincidência, Valverde completa amanhã 41 anos de idade, o que tornaria a sua vitória não só histórica, mas também poética.
O único belga a vencer o Monumento das Ardenas no século XXI foi o valão Philippe Gilbert, em 2011, ano em que arrecadou também as outras duas peças do tríptico das Clássicas das Ardenas, Amstel Gold Race e Flèche Wallonne, feito apenas igualado por Davide Rebellin, em 2004. Gilbert conseguiu ainda juntar ao seu pecúlio nessa temporada outra clássica belga disputada nesta fase do calendário, a Brabantse Pijl (Flèche Brabançonne), para um inédito poker!
O campeão em título da La Doyenne é o esloveno Primoz Roglic, numa edição de 2020 que fica marcada pelo sprint irregular e festejo extemporâneo do campeão mundial, Julian Alaphilippe.
Em 2017, realizou-se a 1ª edição da Liège-Bastogne-Liège na vertente feminina, num formato Bastogne-Liège, com a vitória a sorrir à holandesa Anna van der Breggen, que viria a bisar no ano seguinte. Em 2020, o triunfo foi para a britânica Lizzie Deignan.
O percurso
A rota habitual da Liège-Bastogne-Liège percorre as estradas da região este da Valónia, arrancando de Liège e seguindo para Sul em direção a Bastogne, para depois regressar à casa de partida, numa ligação total a rondar os 250/260 km. Esta longa quilometragem, aliada à dificuldade do percurso, tornam La Doyenne uma das mais difíceis provas velocipédicas do calendário internacional.
Enquanto a estrada que leva os ciclistas até Bastogne é plana, o regresso é feito através de uma zona bem sinuosa das Ardenas belgas, com diversas subidas e descidas, não muito longas, mas bastante íngremes, antes do final em Liège. Nos derradeiros km, a corrida é conhecida pela vincada transição entre o cenário rural e o ambiente pós-industrial da maior cidade da Valónia.
O esquema tradicional do final da prova inclui uma zona plana no acesso à meta no centro de Liège, no entanto, a organização alterou esse perfil em 1992, passando o final para os subúrbios, em Ans, com um final muito mais exigente, que favorecia claramente os puncheurs. Contudo, em 2019, a Velha Senhora voltou ao seu look habitual, com 15 km planos antes da meta.
Todos os anos, a organização da prova seleciona cerca de uma dúzia de colinas a serem ultrapassadas. A subida mais icónica e que durante muitos anos foi a chave da corrida é a Côte de La Redoute, uma ascensão com 2 km de extensão a 8,9% de inclinação média e com zonas acima dos 20%! No perfil atual, e que será seguido em 2021, a Cotê de La Redoute é a primeira das três subidas finais, antecedendo os desafios da Cotê des Forges (1.3km a 7,8%) e da Cotê de la Roche-aux-Faucons (1.3km a 11%), que seguramente irão definir a corrida. Note-se que, em 2021, os ciclistas enfrentarão um total de 4.266 metros de desnível acumulado, numa verdadeira odisseia com mais altos e baixos que uma passagem no Cabo das Tormentas.
Outros dos fatores que tornam o Monumento das Ardenas tão especial é o clima, muitos vezes de um rigor extremo, com vento gélido e nevões frequentes.
A Liège-Bastogne-Liège é uma dura corrida de eliminação, onde é difícil uma fuga conseguir ter sucesso, com o cenário mais habitual a ser uma decisão entre um reduzido grupo de favoritos. Trata-se de um verdadeiro monumento ao ciclismo, onde apenas os mais fortes podem aspirar a triunfar. O vencedor será sempre alguém com uma extraordinária capacidade física, mas também alguém com nervos de aço, com inteligência e visão tática da corrida. Tem de ser um ciclista que suba bem, mas que tenha robustez para rolar e sprintar, um verdadeiro all-rounder.
Sem desprimor para com os restantes monumentos ciclísticos, todos eles bem difíceis de ganhar, cada um à sua maneira, a Velha Senhora representa um desafio à parte. É como uma grande volta concentrada numa corrida de um dia, atraindo por isso não só os especialistas das clássicas, mas também os voltistas. As subidas são ligeiramente mais longas do que é habitual neste género de clássicas, o que significa que o formato de corrida não é tanto o de luta por posição para depois imprimir potência na subida, mas sim de endurance e de aguentar o desgaste melhor do que os adversários, como acontece em muitas etapas de grandes voltas.
E em 2021? Quem irá gravar o seu nome no livro de ouro deste decano monumento, juntando-se a monstros sagrados como Léon Houa, Fred De Bruyne, Rik Van Looy, Jacques Anquetil, Eddy Merckx, Roger De Vlaeminck, Bernard Hinault, Sean Kelly, Moreno Argentin, Paolo Bettini, Philippe Gilbert, ou Alejandro Valverde?