Coppi e Bartali, o confronto entre dois mundos!

A história do desporto está repleta de grandes rivalidades: Senna/Prost, Ali/Frazier, Borg/McEnroe, Navratilova/Evert, Bird/Johnson, Ronaldo/Messi, Anquetil/Poulidor, Hinault/LeMond, Boonen/Cancellara, etc. etc., mas, discutivelmente, nenhuma terá tido tanto impacto na sociedade da sua época como aquela que opôs dois nomes maiores do ciclismo italiano: Fausto Coppi e Gino Bartali.

A disputa entre estes dois colossos do pedal foi muito além da vertente desportiva, entranhando-se bem no seio da sociedade e das tradições italianas.

De um lado, Gino Bartali, natural de Florença, um homem simples, conservador, religioso, ligado às raízes e endurecido pelas dificuldades da época, um verdadeiro herói da Itália rural do Sul.

Do outro, Fausto Coppi, nascido em Castellania, perto de Turim, uma pessoa cosmopolita, moderna, alguém que transbordava confiança em si e nos avanços da ciência, o símbolo da Itália industrial do Norte.

Bartali, também conhecido como “Ginettaccio” ou “Gino, o Pio”, era cinco anos mais velho que Coppi e, antes do aparecimento do seu rival, era o grande dominador do ciclismo italiano. Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, Bartali venceu por duas vezes o Giro d’Itália (1936 e 1937) e por uma vez o Tour de France (1938), sendo que viria mais tarde a vencer ainda o Giro de 1946 e o Tour de 1948. Até aos dias de hoje, estes 10 anos de diferença entre vitórias na Volta a França permanecem um recorde.

Gino Bartali

Coppi, Il Campionissimo, também conhecido como a “Garça”, venceu o seu primeiro Giro em 1940, na antecâmara da entrada da Itália na Segunda Guerra Mundial. Viria a conquistar um total de cinco Voltas a Itália (1940, 1947, 1949, 1952, e 1953) e duas Voltas a França (1949 e 1952), além do campeonato do mundo de 1953.

Fausto Coppi

O trajeto dos dois rivais começou por cruzar-se, precisamente, no ano de 1940, quando Coppi foi contratado para auxiliar Bartali na equipa Legnano. A Garça acabaria por vencer o Giro desse ano por larga margem, com apenas 20 anos de idade (permanece o mais jovem de sempre a consegui-lo), apesar dos esforços de Bartali, que colocou a restante equipa a trabalhar na perseguição ao jovem Coppi, que pouco quis saber quem era o líder no papel. Ginettaccio tomou isto como uma afronta pessoal.

Gino Bartali e Fausto Coppi no Giro d’Itália de 1940

Nascia então uma enorme fricção entre as duas figuras, um choque de identidades constante e crescente, e que haveria de incendiar paixões e mover multidões durante muitos anos.

No entanto, esta grande rivalidade teve uma abrupta paragem logo no seu início, com a entrada da Itália na Segunda Guerra Mundial em 1940, o que significou a interrupção das diversas competições desportivas e a suspensão do Giro d’Itália no período 1941-1945. Neste período, de enorme convulsão, os dois ícones sentiram de perto os horrores da guerra, assistindo ao desaparecimento de amigos e familiares, e contactando de forma muito próxima com as vicissitudes do conflito.

Depois de vencer o Giro de 1940, Coppi alistou-se no exército, sendo que estava, de alguma forma, protegido pelo seu estatuto e, numa fase inicial, pôde continuar a treinar. No entanto, em março de 1943, seria mesmo destacado para o Norte de África, acabando por ser capturado pelos britânicos na Tunísia, logo no mês seguinte. Enquanto esteve preso, realizou diversos trabalhos, nomeadamente como barbeiro, sendo libertado em 1945, ano em que voltou a competir e a vencer.

Quanto a Bartali, tratava-se na altura de uma figura de vulto do desporto e da sociedade italiana, que era visto pelo regime de Benito Mussolini como um atleta de referência mundial, que simbolizava a superioridade italiana. Tratava-se de alguém que foi abençoado pessoalmente por três Papas e que era mesmo uma extensão do Vaticano na sociedade italiana, um homem com peso na política, que apoiava abertamente o Partido Democrata Cristão, mas que conseguia ter a simpatia também por parte dos rivais do Partido Comunista Italiano.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Bartali tinha liberdade para treinar na sua bicicleta, podendo usufruir do seu estatuto para, de algum modo, se resguardar perante tão grave conflito. No entanto, Gino, o Pio, era um homem de fibra e de princípios, acabando por preferir juntar-se à Resistência na luta contra o regime fascista. Com os seus esforços, salvou a vida de centenas, ou até milhares, de judeus que sem o seu auxílio teriam sido enviados para campos de concentração.

Montado na sua fiel companheira de duas rodas e equipado com a sua camisola de competição habitual, de forma a ser mais facilmente reconhecível, Ginettaccio transportava mensagens e documentos de identificação falsificados escondidos nas rodas da sua bicicleta, usando a sua imagem e o seu nome para passar pelos bloqueios militares italianos e alemães ao longo dos muitos km de caminho.

Bartali costumava sair de Florença de manhã, para “treinar”, e seguia até Assis, a mais de 170 km de distância, onde recolhia fotografias de judeus que se escondiam nos conventos franciscanos, regressando depois a Florença, onde eram feitos os documentos de identificação. Chegou a ser detido, questionado, e ameaçado, mas nunca revelou o que tinha feito. Mesmo anos mais tarde, sempre manteve o silêncio sobre as suas façanhas.

Gino Bartali em “treino”

Com o retomar do ciclismo no pós-guerra, regressava também a clivagem Coppi/Bartali. No Giro de 1946, Ginettaccio conseguiu vingar a derrota sofrida em 1940, triunfando por pouco sobre o seu grande Némesis. Coppi não tardou a ter a sua desforra, vencendo a Milano-Sanremo desse ano e o Giro de 1947, onde Bartali fez 2º. No ano seguinte, Ginettaccio completou o feito de vencer o Tour, volvidos 10 anos da sua primeira vitória. Em 1949, Coppi alcançou o feito de ser o primeiro ciclista a vencer Giro e Tour no mesmo ano, algo que Bartali muito almejava.

Em 1948, nos Campeonatos do Mundo de Valkenburg preferiram desistir do que colaborar um com o outro, o que acabou por resultar numa suspensão de três meses para cada um dos ciclistas.

Apesar das inúmeras batalhas, houve momentos de trégua. No Tour de 1949, depois de muita polémica por Coppi se recusar a alinhar pela Seleção Nacional Italiana ao lado de Bartali, teve de ser o capitão da equipa, Alfredo Binda, a mediar a situação, conseguindo que os dois astros juntassem forças. Apesar de alguns percalços, Bartali e Coppi acabariam por colaborar nesse Tour a espaços, com a vitória a sorrir ao Campionissimo.

Segundo muitos relatos, os dois titãs do velocípede eram, de facto, bons amigos, amigos que discutiam frequentemente, mas que conseguiam conviver e disfrutar da companhia um do outro. Ambos sabiam bem tudo aquilo que representavam, mas também aquilo que representava o seu grande rival.

Gino Bartali e Fausto Coppi

Importa referir que, na Europa do pós-Segunda Guerra Mundial, com os veículos a motor ainda pouco acessíveis às grandes massas, a bicicleta era o principal meio de transporte e um importante símbolo da vida em sociedade e, em particular, da reconstrução dos países mais afetados por duros regimes ditatoriais e pela destruição da guerra.

As provas de ciclismo tinham uma importância tremenda na vida quotidiana, indo muito além da vertente desportiva. O ciclismo funcionava como uma verdadeira metáfora para as agruras da vida. As pessoas vibravam de forma intensa com os feitos dos ciclistas, identificando-se claramente com a dor e com o sofrimento desses heróis do selim. Na altura das grandes competições velocipédicas, milhares de pessoas nas estradas, e milhões colados à rádio ou atentos aos jornais, seguiam com devota atenção estes deuses sagrados, que se batiam destemidamente em cima da bicicleta.

Coppi e Bartali eram os exemplos acabados destes heróis, sendo que cada um personificava uma das duas identidades do país: o Norte moderno e o Sul tradicional. E os tiffosi seguiam cegamente estas figuras polarizantes. De um lado, os coppiani, comunistas, reacionários, e modernistas; do outro, os bartaliani, conservadores, cristãos, e tradicionais. Os dois lados eram inconciliáveis, o que acabava por dar ainda mais motivação aos dois atletas para superarem o adversário. Além das diferenças pessoais e da clara animosidade entre eles, era um país inteiro que se dividia entre os dois, em função das características culturais e económicas do próprio país.

Gino Bartali e Fausto Coppi, recebidos pelo Papa Pio XII, em 1950

Neste período de recuperação e de olhos postos no futuro, Coppi acabou por ser aquele que melhor se adaptou a um mundo em mudança, personificando a revitalização industrial e económica. Bartali era alguém muito ligado à terra, que inclusive não gostava de competir fora de Itália. Já Coppi era um homem do mundo, confiante na sua posição como figura de proa da nova Itália.

Os dois rivais eram diferentes em tudo: Bartali casou novo, permanecendo fiel à sua mulher, enquanto Coppi deixou a sua mulher e filhos para viver com uma mulher casada, o que chocou um país onde o divórcio era ilegal. Este acabou por ser mais um ponto de rutura entre os coppiani e os bartaliani, e na própria sociedade italiana. Este quebrar de regras por parte de Coppi tornou-o ainda mais um símbolo daqueles que defendiam o progresso e a mudança social, afastando-o radicalmente da porção mais conservadora da população.

Outro dos pontos em que eram radicalmente diferentes era o da alimentação. Bartali comia fartamente, bebia vinho e muito café, e fumava, enquanto Coppi seguia dietas rigorosas e científicas, recorrendo muitas vezes a um estimulante designado “a bomba”, um cocktail de químicos, incluindo anfetaminas. Bartali era abertamente contra estas práticas (que não eram proibidas na altura), apontando o dedo ao seu rival por diversas vezes e relatando que chegou a entrar no quarto de hotel de Coppi para procurar provas de doping.

Gino Bartali e Fausto Coppi

Uma das imagens mais marcantes da rivalidade entre Fausto e Gino ficou registada durante a Volta a França de 1952. Depois de muitas batalhas entre os dois monstros sagrados, o Tour desse ano apresentava-se como um verdadeiro tira-teimas sobre quem era o melhor da sua geração. Coppi tinha vencido o Giro e procurava o seu segundo double Giro-Tour, enquanto Bartali procurava negar esse feito ao seu rival e recuperar, por uma última vez, a coroa de melhor do mundo.

Na subida ao mítico Col d’Izoard, a lente de um fotógrafo captou uma imagem onde é possível ver Coppi ligeiramente à frente de Bartali e uma garrafa de água a ser passada de um para o outro. Embora pareça ser Coppi a ceder a garrafa ao seu rival, o debate sempre se manteve sobre quem dava a imagem de magnanimidade e clemência, auxiliando o seu rival em tão dura jornada. Ambos sempre se recusaram a ceder, afirmando cada um que tinha sido o próprio a passar a garrafa, o que apenas veio alimentar a rivalidade entre os dois.

Bartali e Coppi no Tour de France de 1952

Coppi acabaria por vencer o Tour de 1952, completando a segunda dobradinha Giro-Tour, com Bartali a ser apenas 4º, a mais de 35 minutos do Campionissimo.

Até aos dias de hoje, os legados de Coppi e de Bartali e a história da sua rivalidade permanecem como elementos únicos, com relevância desportiva, histórica, social, económica, e cultural, com um impacto muito para além da modalidade. A fotografia tirada no Tour de 1952 acaba por ser a representação perfeita deste confronto lendário. Dois dos mais emblemáticos desportistas de todos os tempos, as duas faces da sociedade italiana, cobertos de poeira e suor, num momento de empatia e de tentativa de superar condições muito difíceis, numa metáfora perfeita para a luta por um futuro melhor por parte de um país com divisões profundas e inconciliáveis. Os dois até podem ter-se ajudado um ao outro, mas nunca iriam admitir fraqueza perante o lado rival, à semelhança do que certamente acontecia com tantos italianos neste desafiante período. De qualquer forma, esta mostra de camaradagem representava um sinal de esperança face à frágil recuperação económica do país e a ideia que era possível cooperar mesmo tendo visões profundamente diferentes da sociedade.

Quando competiam, Coppi e Bartali sabiam que não o faziam apenas para a sua glória pessoal, mas que um país inteiro estava com eles, de alma e coração. Sabendo aquilo que significavam para o povo, não podiam ceder um milímetro que fosse, ainda para mais depois de tantas dificuldades sofridas ao longo da vida.

Se é verdade que a sociedade influencia o desporto, esta grande rivalidade veio mostrar que o inverso também se verifica.

A idolatria dos tiffosi era algo de arrebatador. Conta-se que durante a Volta a Itália, Bartali tinha de usar tampões de cera nos ouvidos para poder dormir, face aos cânticos dos fervorosos adeptos que passavam a noite debaixo da sua janela gritando: “Gino! Gino! Gino!”

O palmarés destes dois Adamastores do ciclismo é simplesmente impressionante. Apenas referindo os principais resultados, temos:

Fausto Coppi:

  • 2x Tour de France (1949, 1952)
  • 5x Giro d’Itália (1940, 1947, 1949, 1952, 1953)
  • 9 etapas do Tour de France
  • 22 etapas do Giro d’Itália
  • 3x Milano-Sanremo (1946, 1948, 1949)
  • 1x Paris-Roubaix (1950)
  • 5x Giro di Lombardia (1946, 1947, 1948, 1949, 1954)
  • 1x Campeonato do Mundo de Estrada (1953)
  • 2x Campeonato do Mundo de Pista – perseguição individual (1947, 1949)
  • Recorde da Hora (1942)

Gino Bartali:

  • 2x Tour de France (1938, 1948)
  • 3x Giro d’Itália (1936, 1937, 1946)
  • 12 etapas do Tour de France
  • 17 etapas do Giro d’Itália
  • 4x Milano-Sanremo (1939, 1940, 1947, 1950)
  • 3x Giro di Lombardia (1936, 1939, 1940)

A memória de Coppi e Bartali está gravada a letras de ouro na tradição do ciclismo italiano e mundial, mas na também na própria história do século XX. Ao longo dos anos, diversas iniciativas foram criadas para homenagear tanto um como outro, como ainda os dois em conjunto.

Memorial a Fausto Coppi, nos Dolomitas, Alpes

No Giro d’Itália, é atribuído um bónus ao corredor que passar em primeiro no ponto mais alto do percurso de cada edição. Para esse efeito, todos os anos, uma das míticas e monstruosas subidas da Volta a Itália é batizada de Cima Coppi, em homenagem ao Campionissimo.

Refira-se que a localidade onde nasceu Fausto Coppi, Castellania, foi rebatizada de Castellania Coppi em 2019, ano do centenário do nascimento do ilustre filho da terra.

Quanto a Gino Bartali, o “Homem de Ferro” ocupa um lugar de relevo entre aqueles que combateram o fascismo e o antissemitismo, tendo sido agraciado pelo Estado de Israel com a distinção “Justo entre as nações”.

Desde 1984, realiza-se uma corrida por etapas dedicada a esta grande rivalidade: a Settimana Internazionale di Coppi e Bartali, uma prova do calendário UCI Europe Tour (2.1), mas de grande importância no contexto ciclístico italiano. A primeira edição foi vencida por Moreno Argentin, enquanto em 2020 o título foi para Jhonatan Narváez.

A 36ª edição da Settimana Internazionale di Coppi e Bartali arranca hoje, na cidade de Gatteo.

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